A relação entre o inadequado gerenciamento de resíduos sólidos e as emissões de gases de efeito estufa (GEE) são, cada vez mais, reconhecidas científica e politicamente. Para a próxima COP que ocorrerá em novembro, em Dubai, a Associação Internacional de Resíduos Sólidos (“ISWA”, do nome em inglês) anunciou que sediará pela primeira vez o “Pavilhão de Gestão de resíduos e recursos naturais”. Aliás, o tradicional congresso internacional da própria ISWA, em 2023, terá como tema “ações globais para um futuro net-zero”.
Apesar disso, os resíduos sólidos não costumam estar nas estratégias prioritárias para mitigação e adaptação às mudanças climáticas, postura compreensível por, aparentemente, as suas emissões não serem tão significativas quando comparadas com outras fontes como o desmatamento e a queima de combustíveis fósseis. No Brasil, por exemplo, dados do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SEEG) do Observatório do Clima mostram que o setor de resíduos foi o quinto maior emissor em 2020, representando 4% das emissões brutas nacionais (cerca de 92MtCO2e).
Mas, afinal, que setor é esse? A nota metodológica do SEEG é clara ao considerar no escopo do setor as emissões provenientes do tratamento e da disposição final de resíduos sólidos urbanos (aqueles domiciliares e de limpeza urbana), lodos de estações de tratamento de efluentes, incineração de resíduos de serviço de saúde e queima a céu aberto. Em outras palavras, trata-se basicamente do setor de manejo e tratamento de resíduos, o qual não abrange diversas fontes de geração como, por exemplo, aqueles que não passam pela mão do poder público, a exemplo dos provenientes de grandes geradores. Trata-se de opção metodológica, afinal as emissões precisam ser alocadas em algum setor.
Por isso, sugere-se uma análise mais ampla sobre emissões “atribuídas a resíduos”, ao invés das emissões do “setor de resíduos”. Afinal, resíduos são gerados em todos os setores da economia. Isso é importante tanto para evitar um subdimensionamento (inclusive retórico) dos resíduos sólidos nas emissões de GEE brasileiras quanto para utilizarmos de forma efetiva os instrumentos existentes para o seu gerenciamento no combate às mudanças climáticas, com destaque para aqueles previstos na Política Nacional de Resíduos Sólidos (“PNRS”, instituída pela Lei Federal nº 12.305/2010).
Em relação ao primeiro ponto, cita-se, como exemplo, as emissões atribuídas a resíduos agrícolas (369,800 mil tCO2e) que constam nas estimativas do setor agropecuário. Da mesma forma, as emissões por queima de resíduos florestais (66 MtCO2e) são alocadas nas emissões por mudanças de uso da terra e florestas. Por outro lado, nas emissões dos processos industriais, não são levados em consideração os resíduos gerados na produção. Ainda, sob a perspectiva de ciclo de vida, não é claro se alguns fluxos de resíduos estão devidamente contabilizados nas emissões brasileiras, como aqueles gerados na perda de orgânicos no transporte de alimentos, na mineração e aqueles utilizados em tecnologias de recuperação energética. Tudo isso se justifica por uma conhecida e generalizada dificuldade na obtenção de dados robustos e transparentes sobre a geração de resíduos.
No que se refere aos instrumentos de direito relacionados aos resíduos, há diferentes oportunidades para redução das emissões. Para começar, devemos cumprir a legislação. Tanto a disposição final em aterros controlados e em lixões quanto a queima a céu aberto ainda representam parcela significativa das emissões atribuídas a resíduos, apesar de ambas serem práticas proibidas pela PNRS – é verdade que o prazo para a disposição adequada, originalmente previsto para 2014, foi prorrogado para 2024, mas não há qualquer perspectiva de que vá ser cumprido nacionalmente.
Para a disposição final adequada em aterros sanitários, a captura do gás metano, cerca de 28 vezes mais prejudicial ao aquecimento global do que o CO2, é medida importante para evitar sua liberação na atmosfera, ainda que parcial. O Plano Nacional de Resíduos Sólidos, por exemplo, estabelece como estratégia a articulação para que o aproveitamento energético do biogás seja obrigatório nos processos de licenciamento ambiental de aterros sanitários. Tecnologias de tratamento como a cobertura biologicamente ativa também podem contribuir para a retenção de metano no solo.
Idealmente e por definição, porém, a disposição em aterros deve ser apenas daqueles resíduos que já não têm possibilidades de tratamento e recuperação, observada a hierarquia de gestão de resíduos. Por isso, a redução da sua geração, principalmente daqueles com baixo potencial de reciclagem, mostra-se a estratégia mais efetiva para a redução das emissões de GEE, como aponta a Aliança Global para Alternativas à Incineração (GAIA), rede transnacional que atua para a promoção de soluções para a poluição por resíduos, em sua publicação “Resíduo Zero para Zero Emissões” (2022).
Outro importante instrumento do direito dos resíduos é a Avaliação de Ciclo de Vida (ACV), que permite a identificação, entre outros aspectos, de emissões de GEE ao longo do ciclo produtivo, sendo possível identificar inclusive soluções para captura de GEE. Nesse sentido, programas que permitam a melhoria da reutilização e da reciclagem podem contribuir para a redução de emissões oriundas de outros setores, como a mineração e a silvicultura. Estima-se que uma estratégia eficiente de separação de resíduos na origem e de reciclagem poderia reduzir as emissões da cidade de São Paulo em mais de 20%, como demonstra o estudo da GAIA.
A logística reversa, provavelmente o instrumento que teve mais repercussão nos primeiros 13 anos de PNRS, é mais um potencial instrumento para aumento dos índices de reciclagem de produtos e embalagens e para o desenvolvimento de produtos com qualidades ambientais e climáticas superiores. Além disso, para os resíduos da produção, o plano de gerenciamento de resíduos sólidos (PGRS) é um importante instrumento para planejamento da geração e da adequada destinação de resíduos, sendo obrigatório o estabelecimento de metas de redução e de reciclagem.
Esses são apenas alguns exemplos do potencial de mitigação das mudanças climáticas por um adequado e efetivo gerenciamento de resíduos sólidos. Para além disso, implementar a PNRS é uma estratégia de adaptação climática, que contribui para a prevenção de desastres e a transmissão de doenças por vetores como roedores e mosquitos. Estratégias de tratamento de resíduos orgânicos, como a compostagem, ainda podem contribuir para a melhoria do solo e a prevenção de erosão e deslizamentos de terra. Na produção agrícola, o adequado gerenciamento de resíduos pode contribuir para o combate à fome, com a redução de desperdícios.
Aqui não se propõe uma alteração metodológica de inventários de resíduos, estudos com alta complexidade técnica, elaborados por cientistas extremamente capacitados. A proposta é de mudança na perspectiva das políticas públicas diante dos dados técnicos apresentados. O direito dos resíduos deve enfim conversar diretamente com o direito das mudanças climáticas, de forma que a gestão de resíduos seja entendida como política de alto potencial para a mitigação e a adaptação climáticas. Devemos deixar de olhar apenas para um “setor” e entender que, invariavelmente, todos os setores geram resíduos. Assim, a mudança para uma perspectiva intersetorial permitirá a redução de emissões atribuídas a resíduos ao longo das diferentes cadeias produtivas.
Fonte: André Castilho, da ONG LACLIMA A necessária perspectiva de emissões de gases de efeito estufa atribuídas a resíduos sólidos (globo.com)